No velho bar Blue Swan as horas arrastavam-se e os minutos escorriam devagar, como em todas as noites ...
Retiro de velhos conhecidos a quem a vida, de forma mais ou menos inesperada, mergulhou na solidão, era ponto de encontro obrigatório nas noites em que as saudades e as angústias batiam mais fortes que as horas no Big Ben ...
O ambiente do bar era escuro, apenas iluminado por umas luzes vermelhas que o faziam parecer estar em chamas, com mesas redondas e baixas e uns puff’s que alargavam no topo e faziam o corpo sentir o conforto que a alma procurava ... toda esta escuridão servia na perfeição para contrastar com o brilhante dos copos e do gelo que boiava nas mais diversas espécies de bebidas ... de vez em quando um raio de luz, semelhante a um foguete em noite de festa, quando um cigarro se acendia ...
O pianista fazia ecoar por todo o espaço a música “New Coat of Paint” do Tom Waits ... a música perfeita para acompanhar o típico pedido do “give me a double” e para acentuar ainda mais qualquer estado de angústia que invada o coração mais solitário ... mas eles aguentavam-se ali estoicamente, firmes como rochas, a engolir em seco a cada acorde que saía descomandado daquele piano e a afogar as mágoas em cada trago ...
Apesar dos frequentadores serem quase sempre os mesmos praticamente não trocavam palavras entre si ... apenas olhares ... de cumplicidade, de angústia, de vida vazia, de solidão, de batalhas perdidas, de forças esgotadas ... olhares que se espelhavam uns aos outros ... olhares de interrogação ... que de quando em vez deixavam escapar um sorriso ansioso como se adivinhassem respostas que nunca chegavam a aparecer ...
Acendiam mais um cigarro, fitavam os olhos no chão e esperavam ... esperavam que as luzes se acendessem, as únicas luzes que conseguiam dar vida áquele espaço feito de gente que se amontoava e parecia alterar entre um estado onírico e semi-onírico ...
Sim, o palco, que, apesar de pequeno, recebia aquela que, desde há anos, emprestava a sua voz para massajar a alma daqueles homens que buscavam incessantemente aquilo que pareciam nunca mais encontrar ...
Rosa Bacardi, de seu nome artístico, entovava sempre o mesmo repertório ... e assim surgia uma música atrás da outra, tudo demasiado previsível, mas ainda assim suficiente para quebrar o gelo em que se tinham transformado muitos dos corações ali presentes ...
Rosa continuava bonita, apesar de ter já vincados no rosto os sucalcos que a idade escava, mas continuava a cantar com o mesmo prazer, era inevitável vê-la sorrir ao começar cada actuação ... e como os sorissos habitualmente se contagiam era bonito ver como aqueles homens sisudos se deixavam embalar na sua voz como bebés de colo, como se cada nota que saísse daquela boca se transformasse numa mão invisível que lhes acariciava o rosto ...
De repente, quando Rosa se preparava para cantar, a sua canção preferida, numa imitação quase perfeita de Isabel Pantoja, com o seu “Marinero de Luces”, a canção que sempre, desde há muitos anos, encerrava a sua actuação, resolveu dedicá-la, em pensamento, ao único homem que alguma vez notara ali sentado com ar de quem não se sentia perdido, alguém com um brilho tão forte no olhar que poderia iluminar todo o palco se as luzes se apagassem, um homem que só podia ser bom, pensou ela, ou, de resto, não a faria sentir tão especial, mesmo assim, à distância ... e cantou como nunca tinha cantado, para alguém que nunca vira antes nem jamais voltaria a ver ...
Veio depois a saber que era apenas conhecido por Mocho Falante ... o tal homem que destoava pelas cores que pintaram, por uma noite, um bar monocromático ...
Esta é dedicada a ti, amiguinho, porque foram as nossas tonteiras que me inspiraram ... ;)
Caracolinha Bartender ...