Tudo aconteceu no dia em que os seus olhares se cruzaram. Ele acabara de entrar na tasca com uma camisa de alças ainda manchada pelo suor do seu corpo e com umas calças de ganga tão gastas que quem não o conhecesse juraria que tinha vindo até ali a cumprir, de joelhos, uma qualquer penitência. Assim que a fitou deixou escapar um sorriso que, apesar de pouco rasgado, denunciava inequivocamente a falta de um dos incisivos ... encostou ao balcão a generosa e peluda barriga, que lhe descaia sobre o cinto das calças e, com a voz mais colocada e máscula que conseguiu sacar das cordas vocais, rosnou: “óh zé ... avia-me aí uma míne e um pastel de bacalhau ...”.
Ela não conseguia desviar o olhar daquela autêntica locomotiva de testosterona, daquele Adónis da Musgueira e, após limpar da boca, com as costas da mão, as migalhas da sandes de coirato, apressou-se em fazer-se notada ... desapertou, discretamente o botão da camisa rosa choque que comprara no dia anterior na loja do chinês, borrifou-se com a amostra de colónia que lhe foi gentilmente oferecida na última edição da revista «Maria», calçou as tamancas de sola de cortiça, que entretanto descalçara enquanto comia e puxou para baixo a saia de licra amarela que se colava de tal forma ao seu traseiro que tê-la vestida, ou não, pouca diferença fazia ...
Assim que ele sentiu o aroma da colónia dela a invadir-lhe delicadamente as fossas nasais, virou-se para trás num ápice e, sem querer, pisou-lhe o dedo mindinho do pé ... a violência do amasso ortopédico fê-la soltar a mais linda asneira que ele já tivera oportunidade de ouvir vinda da boca de mulher. Ela, quando regressou da viagem alucinante pelo mundo da dor aguda, fitou-o nos olhos e disse-lhe: "tem que se assoar ... tem o nariz todo sujo...".
Enquanto ele limpava o ranho do apêndice nasal à costura da camisa, agradeceu a atenção dela e aproveitou para convidá-la a ir com ele essa noite ao baile do clube recreativo.
E assim foi ... lá se encontraram à hora marcada e dançaram ... dançaram toda a noite ao ponto de ela se esquecer do dedo negro do pé, dilacerado, ainda pela violência do pisão que levou ... fizeram juras de amor e partilharam, de olhos a brilhar, um penaltie tinto e uma dose de pézinhos de coentrada ...
E foi tiro e queda ... desde essa noite inesquecível, nunca se voltaram a ver.
E viveram felizes para sempre.
Caracolinha Romancista